sábado, 24 de novembro de 2007

REMINISCÊNCIAS DE UMA VELHA LOBA DO MAR

É claro que o sonho era outro. Não abrangia a certeza do mar. Devia-se aos goles do dia e não à senha do coração.
Saí a andar pelas ruas, com uma espécie de sentimento de quem foi abandonada outra vez. Atravessei a avenida e no calçadão vi alguém parecido com Chico Buarque e o segui. Com passos cada vez mais rápidos vislumbrei o Apocalipse. O mar ao lado derrubava suas ondas na areia. Tinha certeza que ele estava ali. Confusa eu seguia atrás do homem e sabia que aquele mar, um dia, poderia desaparecer. Assim como eu. Agora nada mais era novidade. Passei a mão sobre meus cabelos brancos enquanto o sol se ajeitava nas rimas dos meus passos. Ardia eu nos desenhos da calçada. Agora este mar que me afunda. Agora outros verdes olhos a me chamarem. Por isso sigo o homem que se parece com Chico. Por que o sigo se o meu amado foi a música materializada de Chico? Foi a prostituta embelezada das canções, a gota d'água na minha vidraça, o navio queimado, o sangue perdido nas veias, Iolanda dos marinheiros, mares que se arrebataram e a Itália dos exilados. Calou a boca dos bárbaros e foi patrício dos mendigos. Geni que em pedras torturou-se. Por isso sigo os passos do homem à minha frente. Lobo do mar alheio à balbúrdia do azul sedução dos cansaços diários. Lobo completo tatuado no peito das canções!
... Mas o mar ali. O pêndulo do sol marcando minhas marés. O ritmo do tempo a não me perdoar. O homem andava cada vez mais rápido e senti que o perderia, pois meus saltos lentos já estavam cansados. Novamente o sentimento de abandono. Desci para a areia e com certo mal-estar tirei meus sapatos de velha. Afundei os pés na areia. Dei-me conta dos anos que haviam passado olhando o mar pela janela. Agora estou mais perto da água e as conchinhas picam meus pés. Olho para o mar e penso: - por que mudou? Amanhã farei oitenta anos de vida neste planeta. É natural – penso eu – que o saudosismo ataque o que ainda resta de ar nos meus pulmões. Agora a pouco achei que tinha quarenta anos e segui um Chico que imaginei. Viúva aos trinta e nove. Inocente aos quinze. Só tive quatro filhos. Foram-se quase todos. Sob minhas asas só há uma. Com cabelos brancos como as ondas que quebram. Ela pensa que me cuida. Assim como penso que controlo as marés. Minha história não é lógica. Não aprendi nada com a vida. Ela só marcou meu rosto e minha pele. Meu marido foi um Almirante e graças a isso ela é confortável. Tinha trinta anos a mais que eu. Casei aos 16 e me vi às voltas com quatro adolescentes para cuidar quando ele morreu. Quando o conheci à beira mar pareceu que o mundo tinha um colorido maior. Veio fardado. Eu tinha quinze anos. Havia uma guerra. O uniforme branco acusou minha paixão. O século foi outro. Era só um belo, sedutor e sério homem de 46 anos. O beijo existiu em público e mostrava uma ousadia desconhecida da minha mãe. Um dia ele me abandonou. Agora estou aqui molhando meus pés na água. O tempo avança. Não há caminho de volta. Somente o oceano à frente. Lembro-me quando fui passear com ele numa outra cidade que tinha mar... Pequena... Diferente deste mar do Rio... Parecia uma lagoa cheia de peixinhos dourados. Não anunciava outras terras como este oceano que tenho em mim e que jamais vencerei. Quando vi Chico pela primeira vez, pela TV, eu ainda não havia me desvencilhado das negras roupas. Além do tempo de luto oficial eu ainda estava de luto. Já era uma velha. Sentia-me assim. Meus filhos jovens. O mais velho foi um Carbonário. Perdi-o por dez anos, quando fugiu para o Chile e de lá para a Europa. Continuei cuidando dos outros três. Foi nessa época que comecei a ver o mar pela janela. A segunda filha estudou Medicina e hoje é especialista em coração. Renomada e respeitada. Casou com um médico também. Tiveram dois filhos, meus netos, que adoravam surfar e falam uma língua que não entendo muito bem e me olham como um museu de histórias, para mim reais, para eles ficção. Um deles casou. O outro foi para o Hawaí. O que casou tem um filhote guardado em grades. Meu bisneto. Fala a língua dos computadores e eu não entendo nada. Também vê o mar pela janela. Agora eu me arrasto para o mar que me dá saudades do terceiro filho. Não sei por que, mas este mar acusa-me de não tê-lo compreendido. Tão perdido ficou. Vive num apartamento minúsculo que lhe dei, na tentativa de criar-lhe independência. Acho que é homossexual. Ou ermitão. Vive à custa da minha mesada. É muito carinhoso comigo. É o mais sensível de todos. A quarta e última filha é a que me cuida. Metódica. Todo dia acorda às cinco horas da manhã e vai caminhar na praia. Será que ouve o mar? Não sei. Desconfio que seja virgem. É psicóloga. Deixo a água molhar meus pés. Olho para baixo e os vejo feios. Pés de quem pouco ousou. Pés de quem amaram um único homem. Pés de quem não teve coragem de viver depois que ele partiu. Pés que entregaram os pontos e não navegaram por outros mares. Pés que ficaram no Rio. Que fincaram raízes nas sobras da vida. Que sonharam com o mar. “Vem, moleque me dizer onde é que está. Ton soleil, ta brai se quem me enfeitiçou... O mar, marée, bateau”.

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